João de Sousa, Lili, Wescley e Aristéia
Fiquei surpreso quando, na tarde do dia 28 de janeiro, abri o email enviado pelo amigo e pesquisador João de Sousa Lima, comunicando o falecimento da ex-cangaceira Aristéia.
Logo me veio a memória o início do mês de junho de 2011, quando tive a oportunidade de conhecer aquela mulher de uma grandeza e força inquestionável, e a fragilidade de uma menina no auge dos seus 98 anos. Essa é uma boa lembrança que Fortaleza me deixou como marca indelével.
Não sei ao certo distinguir os sentimentos que se misturavam e imbricavam naquele momento, apesar da experiência enquanto historiador, as teorias a respeito das fontes e documentos, eu via naquela mulher mais do que uma ex-cangaceira, mais do que uma fonte para compreender o fascinante e complexo mundo do cangaço.
Como nos lembra o filósofo Walter Benjamin, aquela era uma fonte de experiência, um livro que nunca será escrito devido a sua complexidade, um livro que nunca será lido e compreendido no seu todo devido a sua profundidade. Temos que nos contentar, enquanto historiadores, curiosos, pesquisadores e estudiosos do cangaço, com os pequenos vestígios que vão sendo deixados, haja vista a vida humana ser muito mais do que podemos entendê-la e condensá-la em palavras.
As experiências vivenciadas por Aristéia naquele meio áspero do cangaço, que ela fazia questão, inúmeras vezes, de salientar que aquela era uma “vida de cão”, sofrimento, que não guardava nenhuma saudade daqueles tempos idos, infelizmente morreu junto com ela. Mais uma fonte de história e vida se esgotou, resta-nos satisfazer-nos com os seus depoimentos, em linguagem simples, por vezes tímida, pragmática, mas com uma riqueza inquestionável.
Alguns pesquisadores questionam a importância daquela mulher para o cangaço, haja vista não ter tido uma participação efetiva no meio do bando e ter passado pouco tempo no conviveu dos cangaceiros, relegando-a a um patamar inferior. No entanto, sempre questionei essa visão, pois, como nos é ensinado nos bancos acadêmicos, não podemos hierarquizar fontes, fontes são fontes, cada uma com suas peculiaridades, limitações e riquezas.
O grande valor daquela mulher foi, sem sombra de dúvidas, a sua experiência. Talvez muitos pesquisadores não davam-lhe grande crédito porque ela não dizia o que nós queríamos escutar, ela não fazia apologia ao cangaço, revestindo-o com as vestes do heroísmo, mas não cansava de afirmar a miséria daquela vida, o quanto aquilo era ruim, depoimento que acaba convergindo para o que afirmavam as ex-cangaceiras Sila e Adília.
Durante as mais de duas horas que passei conversando com dona Aristéia no quarto daquele hotel, entre risos, lágrimas, raiva e dor, pude beber daquela fonte, deleitar-me com tanta sabedoria advinda daquela mulher já marcada pelo tempo, com o corpo frágil e as rugas que dava-nos a dimensão do tempo vivido por ela e da credibilidade de suas palavras.
Lembrava com saudade das comidas do cangaço, talvez única lembrança boa guardada na sua memória referente ao tempo de bandoleira, de como os cangaceiros cozinhavam bem. Revirando os escombros da sua memória trazia a tona o cheiro dos perfumes usados sob aquele sol escaldante das caatingas sertanejas. Parecia está novamente tendo em mãos aqueles frascos com odores de um passado remoto. Eis a riqueza da memória, primeira guardiã da história, primeira forma de história, sem rigidez de método, técnica, rigor acadêmico, mas sim seguindo as suas próprias nuanças, as do tempo vivido, das experiências.
Resta-nos apenas a lembrança daquela mulher e a alegria de um dia ter os nossos caminhos se cruzado. Que o repouso eterno possa trazer-te a paz que tanto almejavas, sem dores, sofrimento e perseguição. Fica a saudade!