sexta-feira, 6 de agosto de 2010

NOS INGREMES CAMINHOS DAS REPRESENTAÇÕES LAMPIÔNICAS



Na formação social do Nordeste, ao analisarmos a fundo as suas raízes, vamos encontrar uma cultura e um povo bem peculiar. Nas suas histórias de fantasmas, encantamentos, contos fabulosos que misturam Sagrado e profano em uma mesma narrativa, contemplamos a tessitura de um povo com nuanças culturais complexas. As tradições são revividas de maneira encantadora, principalmente nos mais afastados rincões dos sertões nordestinos. A religião é outro fator marcante no que diz respeito ao ser nordestino; é como se Deus encarnar-se na cultura popular, fazendo-se um com o povo através dos benditos, ladainhas, procissões, rezas fortes que contribuíam para o fortalecimento da crendice popular.

É nesse meio que vamos encontrar figuras humanas que tornaram-se mitos, fizeram-se narrativas que foram sendo reproduzidas de forma espontânea através das conversas cotidianas. O cangaceiro Lampião tornou-se símbolo de uma época, monumento representacional de um povo, sendo a sua história regada de contradições. Ele é a síntese perfeita de como a imagem histórica de um sujeito é passível de múltiplas interpretações de acordo com os interesses que são depositados sobre essa. De pacato almocreve a bandido sanguinário, justiceiro, vingador, bandido social, salvador do Nordeste, símbolo comunista. Diríamos caro leitor, desculpe a popularidade de minhas palavras, que Lampião foi e é “pau para toda obra”.

Mas ele não é o único a ter a sua imagem manipulada, isso aconteceu com quase todos os grandes personagens da história quando se caiu na instigante busca de serem imortalizados pelos seus feitos. Lampião em vida foi se construindo como um mito e usou a mídia para difundir a sua imagem. De passivo ao governo e matuto sertanejo ele não tinha nada. Foi um homem que tinha noção de como a imprensa pode manipular ideias e ideologias.

De 1917 a 1922 Lampião era um cangaceiro simplório, como qualquer outro “cabra” que assumia a vida do banditismo, mas o ano de 22 foi marco na sua história, seu nome saiu do anonimato para ganhar as páginas dos periódicos. Ao atacar a residência da baronesa de Água Branca, os olhares dos jornalistas voltaram-se para o ousado “facínora” que com um golpe ousado atreveu-se a atentar contra a integridade da pacata cidade e da importante octogenária Joana Vieira. A partir desse ano, até praticamente a sua morte em 1938, não se passou uma semana ou mês em que algum jornal do Nordeste não noticiasse o itinerário do seu bando.

Os feitos iam avolumando-se, os sertões varridos pelos rifles impiedosos dos cangaceiros que a sua maneira impunham uma lei a região. Os que se colocavam como vítimas do sistema faziam mais vítimas ainda, castigando e amedrontando ricos e pobres. Se havia admiração popular para com os cangaceiros, o medo também era um outro lado da moeda. A hostilidade do meio árido era agravado com a criminalidade daqueles homens que com suas vestes espalhafatosas e utilitárias, nas suas andanças nômades mudavam o cotidiano de pessoas, vilas e cidades.

O “Rei” ia fazendo sua história... No ano de 1926, sob as bênçãos do padre Cícero Romão Batista, o dito santo de Juazeiro, pai dos romeiros e salvador dos nordestinos, Lampião viu sua imagem ser mudada através de um joguete político para combater a Coluna Prestes. De bandido, Lampião passou a ser Capitão, título esse sem valia oficial, mas que o referido cangaceiro fazia questão de bradar aos quatro ventos a sua patente, forçando todos a tratarem-no como capitão, contribuindo para o polimento do seu brio e sentimento de grandiosidade.

Recepcionado em Juazeiro do Norte com admiração, Lampião e seus “meninos” viram a população aglomerar-se para vê-los. Como peças de museus expostas ao público, eles estavam ali para matar a sede daqueles olhos ávidos por esmiuçar e dissecar aqueles corpos estranhos e exóticos. Os jornais protestavam a recepção dispensada a Lampião, era inaceitável Juazeiro tornar-se novamente reduto de cangaceiros. O Nordeste estava entregue ao banditismo, bradava o jornal “O Nordeste”.

O herói legalista de 1926 não era o mesmo em 1927. Em Mossoró, o “famigerado cangaceiro e seu bando” foram recepcionados debaixo de uma chuva de balas, onde até Deus “abriu as portas do céu em grossas tempestades e trovões, para castigar os invasores”. Na cidade potiguar o cangaceiro foi visto como um corpo estranho, uma praga a ser exterminada, o grande flagelo do Nordeste, assim fazia questão de afirmar os jornais “O Mossoroense”, “Correio do Povo” e “O Nordeste”, todos da cidade invadida.

A identidade de Mossoró foi, então, construída tendo como um dos pilares de sustentação a exaltação da vitória diante da ameaça de Lampião. O “povo que ama a liberdade” se uniu para que sua história heróica não fosse manchada. Os jornais demonizaram os cangaceiros e tornaram o prefeito Cel. Rodolfo Fernandes, juntamente com os voluntários da resistência, os verdadeiros heróis. Os corpos de Colchete e Jararaca foram inscritos como troféus, sobre eles se impuseram a vitória mossoroense, para que ninguém mais ousasse repetir tal feito.

Os anos trinta abriam-se como um novo momento para o país e a história de Lampião, os jornais intensificaram as acusações de acoitamento, denunciando o descaso do governo para com a perseguição ao banditismo. Lampião passou a ser representado como o grande entrave ao desenvolvimento do Nordeste, uma “besta” a ser exterminada com urgência, pois só assim o progresso e modernidade poderiam chegar ao castigado sertão.

Naquele ano de 1936, o sírio-libanês Benjamin Abrahão conseguiu filmar o bando de cangaceiros no seu cotidiano; esse feito foi um divisor de águas na perseguição ao banditismo. As autoridades federais ao tomarem conhecimento do conteúdo do material gravado, no qual os cangaceiros apareciam dançando, comendo, e tranquilamente acoitados nos sertões como uma espécie de micro poder a desafiar o poder oficial, exigem a cabeça de Lampião.

Em 28 de julho de 1938, as margens do rio São Francisco, a vida do cangaceiro Lampião encontrou o seu fim no meio das frias pedras daquele amanhecer, na Grota de Angico. Era o fim de um homem e a intensificação da construção do mito lampiônico. Se vivo o homem era um mistério, depois de morto esse mistério foi ainda mais expandido, gerando polêmicas que chegam até a atualidade, contribuindo para debates calorosos sobre um homem que marcou e marca o ser nordestino, a construção da nossa identidade enquanto região. Lampião como síntese de uma época tornou-se início de uma nova era.

Prof. Wescley Rodrigues





Um comentário:

  1. O Nordeste é uma terra sofrida, porém tem histórias que merece ser contada.
    gostei muito do seu blog. vou segui-lo,
    me siga tbm. escrevo sobre vários temas.
    bjsss.

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